A literatura portuguesa produzida após período da ditadura em Portugal, ou seja, pós-Revolução dos Cravos em 1974, muitas vezes traz traços que remontam esse passado próximo em sua produção. Utiliza-se do fato histórico como fomento de uma expressão literária que foi censurada e que volta a ter voz. O holofote agora é dado a discursos que ficaram silenciados durante a ditadura.
Levando-se em conta o ensaio “Na crise do histórico, a aura da História” de Teresa Cristina Cerdeira, no livro O Avesso do Bordado em que discute-se a diferença dos discursos da ficção e da história, a professora destaca o fato de que a escolha do que entrará para a História com “h” maiúsculo e o que ficará de fora, se torna uma espécie de ficção. A escolha de como narrar o fato por um ponto de vista que até então, era considerado imparcial é questionado.
Assim o discurso da História – ele próprio que, durante tanto tempo, pretendeu reservar para si a prerrogativa da verdade, porque assentado na res factae -, esse discurso só se pode hoje entender como uma construção que tem que pressupor um fosso temporal e material absolutamente intransponível, e o discurso, que antes sonhava em acordar o que foi, acaba por se erigir necessariamente em cima do que já não é. O discurso da História deixa assim de ser um templo de eternização do passado, para se instituir como dimensão criadora do futuro. (CERDEIRA, 2001, p.199)
A história é uma versão, uma espécie de ficção, no sentido de que entrará para os registros históricos uma narrativa a ser escolhida para conduzir o conhecimento sobre aquele período, e como essa narrativa será contada, normalmente contada do ponto de vista dos vencedores ou de sua parte hegemônica, enquanto isso, a literatura se beneficia da liberdade de trabalhar o ficcional, mas, ao mesmo tempo, trazer consigo a carga de empatia, os vários momentos, as várias percepções sobre aquele evento. O outro lado da história muitas vezes serve de fomento para produções artísticas que se aproveitam de momentos históricos importantes do mundo, para tratar das discussões pertinentes.
Manter viva a memória é uma forma de aproximar as pessoas que vivem em uma realidade diferente dos acontecimentos, que fizeram diferença na história. Como o Memorial do Holocausto em Berlim, o Museu do Aljube em Portugal e o Memorial da Resistência, em São Paulo, são tentativas de trazer para um outro momento o aprendizado de maneira mais pessoal, utilizar-se da empatia para mostrar o que aquele momento histórico realmente representou para as pessoas na realidade que por muitas vezes não é retratada. O discurso da História começa a ganhar vários relatos.
A literatura depende da História para que as produções e os momentos dessa arte sejam compreendidos com maior magnitude, mas a literatura também pode se utilizar de fatos históricos para ficcionalizar e trazer certas versões sobre os acontecimentos a luz, para ser observado em um contexto futuro. Assim essa retoma para criticar algo que aconteceu, revisitar um momento histórico para ironizar, volta a algo que precisa ser relembrado como marco de um movimento para se manter ou que precisa acabar.
A arte procura revisitar certos temas para que a memória desses sejam parte da construção de uma sociedade em que o passado tenha seu resultado e que sirvam de exemplo para as futuras gerações.
Quando a literatura olha para o passado com os olhos de uma realidade consequente, essa observação pode ser feita de maneira a querer trazer perspectivas que por muitas vezes não receberam o direito de serem ouvidas e darem as suas versões dos acontecimentos. Fazer com que as pessoas, que já vivem em uma realidade que aqueles fatos já ocorreram, sejam capazes de conhecer a história por diferentes perspectivas. Usar a memória como forma de resistência, trazer os fatos de maneira que aproximem o leitor do microcosmo dos personagens literários, e para que o holofote mude de posição. Ou ainda, serve para que algo ainda faça parte de um aprendizado constante. Tirando o pedestal do discurso hegemônico que seria a seleção da história a ser contada, aquele momento histórico vivido de maneiras diferentes por classes diferentes, por áreas geográficas diferentes.
Livros que remontam períodos marcantes da história, como a Segunda Guerra Mundial, ou ainda lembram conjunturas políticas de países, como as ditaduras, que influenciaram no modo de se ver a política e de viver nesses lugares, que sofreram com golpes de estado, mostram e destacam os perfis que existiam na época com mais pluralidade do que somente o discurso dominante.
A distância temporal ajuda na percepção, que fica limitada, a enxergar o mesmo momento de várias formas.
Em 1980, José Saramago lança o romance Levantado do Chão, que conta o percurso de quatro gerações da família Mau-Tempo. O romance começa apresentando o espaço que os personagens aparecem, a família aparece em um momento de chuva. O período histórico do livro se passa desde o fim da monarquia e o começo da Primeira República até a Revolução dos Cravos, em 1974, em Portugal. Com o foco no povo camponês, trabalhadores do Alentejo. Mais uma produção literária que traz para os leitores de outro tempo o discurso de uma voz que foi calada. As gerações a cada dia tomavam mais consciência de sua existência no mundo em que a força do seu trabalho apenas enriquecia a um dono de terras, e que a miséria que assolava, não trazia condições de trabalho, apenas não faziam sentido, e qualquer momento de problematização era podado
Uma das características mais marcantes na estilística de Saramago é a falta de marcação do discurso direto, e que nesse romance nos dá a sensação de pluralidade de vozes, o discurso que pertence ao um povo, remonta o coro que reverbera a literatura oral. As falas dos personagens existem, mas muitas vezes dá-se a sensação de aquele discurso não pertencer somente a ele, um grupo de vozes ressoa naquela fala.
A saga dos Mau-Tempo é um recurso para aproximar o leitor da realidade dantes calada.
O narrador é onisciente e muitas vezes maneja a história emitindo informações futuras ou omitindo informações para o leitor, mas no momento da descrição de uma das cenas mais violentas do livro, o narrador passa a voz para uma formiga e como Silvio Renato Jorge destaca em seu artigo Literatura, Memória e Resistência
O que aqui se diz vai além do relato, porque nesse texto observa-se manifestamente o desejo de contar e sua própria impossibilidade de o fazê-lo, de trazer a nós, leitores, a representação efetiva da dor e da dissolução da vida perante a morte. O que o texto de Saramago afirma, por mais descritivo que seja, é a sua manifestação como rastro de uma experiência que não se pode recompor em sua integralidade, seja por meio da memória traumática de quem a viveu, seja por meio de uma criação literária que não abre mão de um lugar político de enunciação, mas se reconhece como um processo constituído por e para linguagem. (JORGE, 2017, p. 24)
A literatura tem o poder de eternizar, problematizar e descrever de maneira crua, mas nunca trará toda a potencialidade da crueldade que aparece no romance, não só nas cenas de tortura mas em toda a caminhada da família Mau-Tempo.
Tudo isso em um livro apenas cinco anos depois da Revolução dos Cravos e do movimento da população campesina de Portugal para uma reforma agrária. Apesar de ser lançado após o momento ditatorial, ainda estava bem próximo daqueles acontecimentos.
A escolha de Saramago parecia querer pluralizar as vozes do discurso a muito calado dos camponeses. Manter aquele povo comedido era manter os estilos de vida mais vantajosos para a minoria dominante.
A produção literária em uma sociedade pode trazer consigo algumas limitações na construção de um discurso, mas a literatura, por mais que traga grandes doses de uma realidade dura e crua, ainda é o receptáculo mais acessível para a diversidade de questionamentos que a sociedade ainda precisa discutir.
O passado não pode ser apagado, vivemos o presente resultante de acontecimentos que mudam os caminhos da sociedade, cabe a cada dia nos tornarmos cada vez mais cientes e aprender com os erros e acertos pregressos para que a construção de um presente e um futuro em a realidade seja mais justa, clara e plural. A produção artística entra como o fator que traz a tona todas as questões a serem discutidas, e vale a pena para manter vivo o sentimento de aprendizagem, para dar o protagonismo que lhes foi negado durante o período em que foram oprimidos, e para que a empatia nos traga o benefício de aprender com toda a história da humanidade.
Referências
CERDEIRA, Teresa Cristina. O Avesso do Bordado: Ensaios de Literatura. Alfragide: Caminho, 2001. p. 197-301.
JORGE, Silvio Renato. Literatura, Memória e Resistência. Revista Diadorim. Rio de Janeiro, v.1, n. 19, p. 19-29, 2017.
KUCINSKI, Bernardo. K, relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, 176 p.
SARAMAGO, José. Levantado do Chão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, 366 p.
Texto escrito para a disciplina de Literatura Portuguesa III da Universidade Federal Fluminense
por Dayane Soares Cavalcante, graduanda de Letras - Português e Literaturas de Língua Portuguesa.
por Dayane Soares Cavalcante, graduanda de Letras - Português e Literaturas de Língua Portuguesa.
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